quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Meu Pai.

Pai.
Sei que o senhor não irá ler esta página.
Não tem computador nem é dado a ler textos em português.
Dia sim, dia não, almoçamos juntos, falamos de quase tudo, mas ainda tenho o "quase" guardado dentro de mim. Não sou uma pessoa que tem problemas em falar dos próprios sentimentos, mas nunca cheguei a me desnudar diante dos meus pais no que diz respeito ao meu amor por eles. Respeito? Timidez? Vergonha?Talvez pelo receio de me sensibilizar excessivamente e também pela sensação da desnecessidade de verbalizar o óbvio.
Sempre fui a "filhinha da mamãe". Tenho uma fotografia que me registra em desespero nos braços do meu pai, pois o que eu queria era ir atrás da minha mãe. Onde minha mãe estivesse eu tinha que sair correndo atrás dela. Entre tantos acontecimentos destacam-se alguns mais graves. Quando eu tinha cinco anos era especialmente grudada à minha mãe, ficava o dia todo colada a ela. Um certo dia eu estava resfriada, ela iria lavar o quintal, queria que eu ficasse dentro de casa para não me molhar. Me achando muito esperta fingi obedecer, mas quando ela me deu as costas, saiu para o quintal e bateu a porta tentei segurar a porta pelo lado que tem as dobradiças e é claro que com as mãos de uma criança de cinco anos não consegui impedir que a porta se fechasse e lá se foi meu dedo entre o batente e a porta. Minha mãe me ouvindo gritar, abriu a porta, viu o meu dedo mindinho amassado e sangrando. "POEIM!" caiu desmaiada no chão. Meu pai, cujo estúdio de trabalho era na própria residência, veio correndo e ao ver aquela cena  empalideceu e com o semblante muito sério me colocou numa cadeira, correu para carregar a minha mãe até a cama, me pegou em seus braços e correu até o Pronto Socorro. Soluçando, alternei meu olhar entre o rosto muito sério do meu pai e do médico. Com muito medo observei a costura sendo feita no meu dedo como se costura um tecido. Cada vez que vejo meu dedo mindinho torto com a cicatriz da costura  reconheço que dei bastante trabalho aos meus pais. Tinha muito medo do meu pai na infância, quando ele falava bravo era definitivo e não havia outra opção senão obedecê-lo. Ele trabalhava noite e dia sem descanso nem férias, para ele não havia nem sábado nem domingo. Nas caminhadas que fazíamos ao cair da tarde, ele me contava que havia saido sózinho da Colônia Ribeirão dos Índios aos dezessete anos. Morou numa pensão na cidade de Marília, trabalhou como aprendiz de fotógrafo. Após seus vinte anos resolveu ser aprendiz de fotógrafo em um estúdio de São Paulo. Cursava o ginasial no período noturno, mas as repetidas horas extras que era obrigado a fazer atrapalhava-o nos estudos. Um certo dia decidira que iria se dedicar exclusivamente ao trabalho para se estabelecer, casaria com uma boa mulher, teria filhos e os faria se formarem. Trabalhou duro até conseguir ter o seu próprio estúdio e então conheceu minha mãe quando ela apareceu como uma cliente em seu estúdio. Foi amor à primeira vista, ou melhor, ele conta que foi certeza a primeira vista. Encontrara a mulher da sua vida!  Estas caminhadas vespertinas nos aproximava, eu jamais esqueci do delicioso sabor do pastel e guaraná gelado que meu pai me presenteava no caminho de volta, um segredo nosso antes do jantar. 
Mesmo sendo amigos tínhamos as nossas diferenças. Eu nunca fui uma criança fácil, nada sabia mas tinha opinião para tudo. Até mesmo a disciplina radical do meu pai, a dedicação excessiva ao trabalho me fazia revoltar. Eventos da escola e festas ele nunca participava pois estava sempre trabalhando para cumprir prazos de entrega de fotografias aos seus clientes.
Ele apenas nos levava aos locais dos eventos, então, nas festas éramos sempre uma família de mãe e filhos. Sempre respondíamos, sem graça, às perguntas das pessoas:
- E papai, não veio?
- Ele está trabalhando.
E logo vinha a outra pergunta :
- No domingo?
Recordo-me que sempre brigava com meu pai ao descer do carro e um dia muito revoltada gritei bem alto:
- É sempre a mesma coisa, o senhor nunca participa de nada! Só pensa em trabalhar!
No banco do motorista ele nada falou me olhou simplesmente, mas nunca me esquecí do seu semblante triste. Hoje consigo perceber como deve ter sido difícil ouvir estas palavras minhas, uma criança que ainda não compreendia o tamanho do esforço necessário para sózinho sustentar uma família. Tive os meus momentos de adolescente revoltada com o pai. Tinha grandes e acirradas discussões com ele sobre vários assuntos, política, romance, cinema, qualquer tema virava uma polêmica entre nós. Mesmo falando a mesma coisa discutíamos como se tivéssemos opiniões completamente divergentes. Meus irmãos nunca foram assim, mesmo quando não concordavam com a opinião dele sabiam a hora de parar. Eu brigava, não aceitava as opiniões dele e nem ele as minhas. Contudo quando ele falava era muito difícil superá-lo em argumentações.
Ano passado, viajamos para um campeonato de "Taikô"( Grande tambor - Percussão japonês) que meus sobrinhos iriam participar. O evento aconteceu na cidade de Marília, cidade onde meu pai havia morado aos seus vinte anos quando ainda era aprendiz de fotógrafo. Ele que detesta viagens resolveu nos acompanhar para torcer pelos netos e também para rever a cidade após mais de sessenta anos. Ficamos todos num hotel da cidade, eu e meu pai dividimos o quarto.  Na madrugada, ao vê-lo deitado na cama ao lado, dormindo, meu coração se apertou.  Parecia tão frágil e tão diferente daquele homem que eu ia de encontro com as minhas revoltas, minhas palavras agressivas, pois enxergava-o como um muro forte e irredutível que eu podia ir de encontro sem reservas que jamais iria se desmoronar. Ele sempre foi uma espécie de muro para mim. Um muro que me limitava mas também o muro que me protegia e tudo resolvia. Quando fiquei sériamente doente aos seis anos, quando tirei minha carta de motorista, quando eu bati o carro, quando me casei, em todos os momentos esteve sempre ao meu lado para tudo resolver. Um homem que sempre viveu em função da família, que com a ajuda da minha mãe conseguiu criar e formar seus filhos como ele planejara.
Quando ficou viúvo sofreu muito, o quanto, penso que nunca poderemos imaginar, tamanho era o seu amor pela minha mãe, mas se manteve firme, não queria nos dar preocupação. Até hoje, após cinco anos que minha mãe partira, tudo que o faz recordá-la, enche seus olhos de lágrimas.
Aos oitenta e tantos anos de idade iniciou-se no mundo da escrita em língua japonesa, publica seus textos com uma certa regularidade num jornal da colônia japonesa e tem surpreendido a todos com a qualidade e um conteúdo bastante sensível e romântico, onde minha mãe é a sua principal inspiração.
Pai, sou muito grata a você, respeito-o e admiro-o muito.
Sei que nunca conseguirei ser forte, guerreira e disciplinada tanto quanto ao senhor, muito menos superá-lo.
Pai, adotei uma atitude de palhaça e brava com o senhor pois não quero vê-lo frágil.
Sei que hoje é chegada a nossa vez de ser o seu muro, mas ainda estou condicionada a vê-lo como sendo o nosso muro forte que nos protege e nos ampara.
Pai, nunca te disse em palavras, mas em atitude, de sobra.
Pai, eu te amo.
Feliz Dia dos Pais!

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