Tenho sorte de ter um amigo que além de ser um dentista muito eficiente é também espirituoso.
Cada vez que sento naquela poltrona que mais parece uma cadeira de tortura, ele tenta me relaxar contando piadas.
Na sua maioria, piadas de salão, nada muito proibido para menores.
A ultima que ouvi, além de dar muita risada fez-me também pensativa.
Favorecendo a classe, a piada era sobre uma senhora que foi pega de surpresa por uma dor de dente alucinante!
Necessitava urgentemente de um dentista. Uma mulher que embora tivesse se formado em Odontologia não exercia a profissão. Caminhando desesperada pela rua à procura de um dentista, deparou-se com uma placa sobre a porta de vidro.
Enfim havia encontrado um dentista! Observou surpresa que era o nome do seu colega de faculdade.
- O Adauto! Que boa coincidência!
Alegrou-se.
Subiu a escada ansiosa por dois motivos, a possibilidade de rever o seu colega de faculdade e ter encontrado um salvador. Alguém que a libertaria desta dor dilacerante que sentia no seu canino.
Ao ser conduzida para o consultório constatou decepcionada, que não era nem de longe, quem havia pensado.
- Que pena... não é ele...
Pensou.
Adauto era um homem bonito, elegante, o colega mais charmoso da turma e também o mais disputado pelas universitárias.
Este que sorria diante dela com as pálpebras enrugadas,
óculos de aros grossos sobre a ponta do nariz e a barriga proeminente, não era ele.
O doutor que a convidava a sentar era um velhinho de peles maltratadas que em nada lembrava o seu colega. Quase totalmente calvo, conservava cuidadosamente alguns fios que restara sobre a cabeça. Não, definitivamente, este não era o Adauto.
No intervalo dos procedimentos a mulher que estava intrigada com a coincidência resolveu puxar o assunto.
- O doutor tem exatamente o mesmo nome de uma pessoa que conheci na faculdade de Odontologia...
- Ah, é?
Responde interessado.
- É... Por acaso, o senhor teria estudado na Universidade de São Paulo, turma de 1977?
O doutor balança a cabeça afirmativamente e responde:
- Sim, sim, justamente! Olha só! Mas... A| senhora... Dava aula de qual disciplina?
Mesmo com a boca cheia de algodão dei muita risada e o meu dentista bem humorado mais ainda do que eu.
Eu logo brinquei com ele.
- Olha, não é nenhuma indireta para mim. É?
Ele ficou assustado e disse:
- Não, Naomy! Que isso!
Dei risada para libertá-lo do sufoco. Contei a ele que recentemente quando revejo os amigos da faculdade passei a me sentir apreensiva. Quando se trata de uma amiga de infância então, é de dar um frio na barriga! Quando me reconhecem fico feliz e mais tranquila! Quando me reconhecem de imediato, ganho o dia! Sinto-me nas nuvens!
Ele deu muita risada. Meu amigo dentista tem coragem de contar piadas assim pois está isento destas preocupações. Há muitos anos que o conheço e ele não mudou quase nada na sua aparência..
Sabe aproveitar a vida! Sorte dele!
Muitas vezes, quando passamos distraídas diante de vitrines espelhadas nos encontramos com a nossa face que não estamos acostumadas e nos assustamos.
Em casa quando pegamos o espelho para nos analisarmos intencionalmente, fazemos pose, sorrimos, esticamos o queixo para disfarçar o queixo duplo, escurecemos um pouco o ambiente, tentamos focalizar apenas o melhor lado do nosso rosto.
Quando se trata de terceiros conseguimos encarar todos os "pés de galinha", "bigode chinês", "código de barra", enfim, rugas e marcas de expressão que a vida deixa registrado como uma recordação, no rosto das pessoas. Estando diante do outro enxergamos defeitos alheios, mas nesse momento não temos um espelho diante de nós que reflita também os nossos.
Não acreditamos e damos risada ao ouvir alguém dizer que a beleza física não importa, o que conta é a beleza interior ou ainda, que assim como o vinho, quanto mais os anos passam ficamos melhor.
Não existem receitas concretas que nos ensinem a nos mantermos bem ao longo da vida. Se existisse, com certeza, seriam vendidas a preços exorbitantes! Como eu não tenho a receita e muito menos, dinheiro para comprá-las quando houver, eu me arriscaria a crer que se formos capazes de manter a pureza da alma que recebemos ao nascer, conservar a euforia que sentimos diante das belas coisas da vida, do amor
e principalmente, se soubermos amar a nós mesmos, tudo isto refletirá positivamente na nossa face.
Afinal, não dizem que o rosto é o espelho da nossa alma? Assim, penso que não haverá marcas registradas em nosso físico que seja suficiente para abafar a nossa beleza!
E beleza, com certeza, todos temos dentro de nós!
sexta-feira, 27 de maio de 2011
sábado, 14 de maio de 2011
Nada demais.
Cada dia que acrescento à minha vida tenho sentido indignada e encantada ainda mais com o que encontramos no coração das pessoas. Um pequeno incidente metropolitano, dentro de um ônibus urbano, me deixou reflexiva sobre a capacidade do ser humano de torcer pelo outro. Um jovem passageiro absorto em seus pensamentos não percebeu que o seu destino estava próximo. Ele ainda nem havia passado pela catraca. Em segundos deveria descer. Quando percebeu, virou a cabeça para direita, para esquerda, arregalou os olhos, levantou-se num espanto, retirou o seu * "bilhete único" do bolso, passou seu cartão pelo leitor ótico, passou pela catraca, correu espremendo-se entre os passageiros de pé e desceu apressado do ônibus. Conseguira o seu intento, descer a tempo no seu ponto de destino. Porém, ao fazê-lo, seu cartão de "bilhete único" havia ficado no chão do ônibus. Apressado, sem perceber, o distraído rapaz, foi andando pelas ruas da cidade grande.
Imediatamente um passageiro recolheu o cartão do chão. Olhou ao redor para verificar se alguém o flagrara. Algumas pessoas que estavam sentados próximos à porta de saída do ônibus, inclusive eu, entendemos rapidamente o que se passava.
- Ai! É o cartão do garoto!
Gritei.
Logo outras pessoas também se manifestaram:
- É! Coitado do rapaz, o bilhete pode estar cheio de crédito!
Pela janela do veículo em movimento procuramos pelo rapaz.
Lá estava ele, enfiando suas mãos em todos os bolsos da sua calça, à procura de algo. Obviamente percebera que havia acabado de perder a sua garantia de transporte. Ergueu seu rosto desesperado em direção ao ônibus que se distanciava rapidamente.
O homem que pegara o cartão, já havia guardado o cartão em seu bolso. Apossara-se, satisfeito, do bem alheio. Afinal ele deve ter pensado:
-Achado não é roubado.
Ele me olhou com frieza um tanto ameaçadora e levantou seus ombros como quem diz:
-Vai fazer o quê...
Pela janela traseira vimos o rapaz correndo e tentando alcançar o ônibus.
-Moço, devolve pra ele, é só jogar o cartão pela janela, ele alcança e pega...
Com muito medo, falei. O homem tinha uma cara muito feia.
Todos ao meu redor me ajudaram:
-É! Devolve! O rapaz tá correndo! Deve ter muito crédito no cartão! Joga o cartão pela janela que ele pega! Vai!
Todos tinham um semblante muito sério! O homem ficou sem jeito em meio a tanta pressão, mas ainda assim resistiu fingindo não ouvir.
Uma mulher forte levantou-se do assento, abriu a janela e gritou ao homem:
-Vai! Joga!
Acuado e percebendo que era minoria retirou o cartão do bolso.
Com má vontade o homem jogou com pouca força.
Olhamos para o rapaz. Ele percebera que algo caira do ônibus e acelerou ainda mais seus passos, olhou para nós, um monte de rostos solidários grudados na janela, sorriu e acenou. Só ficamos tranquilos quando ele alcançou e pegou o cartão sobre a calçada. Com o cartão recuperado, mais uma vez acenou em agradecimento.
Todos nós nos recompusemos e seguimos satisfeitos, menos o homem de cara feia.
Um acontecimento tão corriqueiro, tão normal e óbvio, devolver a alguém o que lhe pertence, nada demais, mas ainda assim foi necessário batalhar, pensei.
Uma coisa, "nada demais" que revela duas facetas humanas tão díspares, o "levar vantagem" sobre os seus semelhantes e o satisfazer-se torcendo para que os seus semelhantes não sejam prejudicados.
Finais felizes sempre nos proporcionam satisfação independentemente de quem quer que seja o envolvido.
* Bilhete Único em SP: Sistema de bilhetagem eletrônica que permite utilizar, ao preço de uma tarifa, 4 viagens (ônibus/metrô ou trem) no período de 3 horas. Sistema de cartão, creditado valores neles em casas lotéricas e nas estações dos metrôs. Existem vários sistemas: comuns, estudantes, vale-transporte, mãe-paulistana, bilhete-amigão e especial (idosos e pessoas com necessidades especiais).
Imediatamente um passageiro recolheu o cartão do chão. Olhou ao redor para verificar se alguém o flagrara. Algumas pessoas que estavam sentados próximos à porta de saída do ônibus, inclusive eu, entendemos rapidamente o que se passava.
- Ai! É o cartão do garoto!
Gritei.
Logo outras pessoas também se manifestaram:
- É! Coitado do rapaz, o bilhete pode estar cheio de crédito!
Pela janela do veículo em movimento procuramos pelo rapaz.
Lá estava ele, enfiando suas mãos em todos os bolsos da sua calça, à procura de algo. Obviamente percebera que havia acabado de perder a sua garantia de transporte. Ergueu seu rosto desesperado em direção ao ônibus que se distanciava rapidamente.
O homem que pegara o cartão, já havia guardado o cartão em seu bolso. Apossara-se, satisfeito, do bem alheio. Afinal ele deve ter pensado:
-Achado não é roubado.
Ele me olhou com frieza um tanto ameaçadora e levantou seus ombros como quem diz:
-Vai fazer o quê...
Pela janela traseira vimos o rapaz correndo e tentando alcançar o ônibus.
-Moço, devolve pra ele, é só jogar o cartão pela janela, ele alcança e pega...
Com muito medo, falei. O homem tinha uma cara muito feia.
Todos ao meu redor me ajudaram:
-É! Devolve! O rapaz tá correndo! Deve ter muito crédito no cartão! Joga o cartão pela janela que ele pega! Vai!
Todos tinham um semblante muito sério! O homem ficou sem jeito em meio a tanta pressão, mas ainda assim resistiu fingindo não ouvir.
Uma mulher forte levantou-se do assento, abriu a janela e gritou ao homem:
-Vai! Joga!
Acuado e percebendo que era minoria retirou o cartão do bolso.
Com má vontade o homem jogou com pouca força.
Olhamos para o rapaz. Ele percebera que algo caira do ônibus e acelerou ainda mais seus passos, olhou para nós, um monte de rostos solidários grudados na janela, sorriu e acenou. Só ficamos tranquilos quando ele alcançou e pegou o cartão sobre a calçada. Com o cartão recuperado, mais uma vez acenou em agradecimento.
Todos nós nos recompusemos e seguimos satisfeitos, menos o homem de cara feia.
Um acontecimento tão corriqueiro, tão normal e óbvio, devolver a alguém o que lhe pertence, nada demais, mas ainda assim foi necessário batalhar, pensei.
Uma coisa, "nada demais" que revela duas facetas humanas tão díspares, o "levar vantagem" sobre os seus semelhantes e o satisfazer-se torcendo para que os seus semelhantes não sejam prejudicados.
Finais felizes sempre nos proporcionam satisfação independentemente de quem quer que seja o envolvido.
* Bilhete Único em SP: Sistema de bilhetagem eletrônica que permite utilizar, ao preço de uma tarifa, 4 viagens (ônibus/metrô ou trem) no período de 3 horas. Sistema de cartão, creditado valores neles em casas lotéricas e nas estações dos metrôs. Existem vários sistemas: comuns, estudantes, vale-transporte, mãe-paulistana, bilhete-amigão e especial (idosos e pessoas com necessidades especiais).
quinta-feira, 5 de maio de 2011
Mãe.
Mãe,
Agora, comigo sempre está, eu sei.
Antes, de carro precisava para encontrá-la.
Agora, sem palavras, conversamos.
Antes, palavras escolhia para não preocupá-la.
Agora, meu coração se aperta ao recordá-la.
Antes, meu coração batia forte ao vê-la.
Agora, mais um "Dia das Mães" se aproxima.
Flores depositarei sobre sua grama.
Mãe,
por mais palavras que eu aprenda,
por mais culta que eu me torne,
jamais será suficiente.
Nenhuma palavra transmitirá o que sinto.
"Amor" seria a palavra que se aproxima.
E agora, "Saudade".
Feliz Dia das Mães!
Naomy Kuroda
Agora, comigo sempre está, eu sei.
Antes, de carro precisava para encontrá-la.
Agora, sem palavras, conversamos.
Antes, palavras escolhia para não preocupá-la.
Agora, meu coração se aperta ao recordá-la.
Antes, meu coração batia forte ao vê-la.
Agora, mais um "Dia das Mães" se aproxima.
Flores depositarei sobre sua grama.
Mãe,
por mais palavras que eu aprenda,
por mais culta que eu me torne,
jamais será suficiente.
Nenhuma palavra transmitirá o que sinto.
"Amor" seria a palavra que se aproxima.
E agora, "Saudade".
Feliz Dia das Mães!
Naomy Kuroda
segunda-feira, 2 de maio de 2011
Meu violão.
Tenho um violão que me acompanha pela vida desde os meus seis anos de idade.
Não que eu não tenha tentado, mas nunca consegui fazer dele um ativo instrumento musical. Ele sempre foi e provavelmente sempre será apenas o meu guardião de lembranças. Sinto muito por ele, pois certamente ele foi confeccionado para brilhar, para nos embalar com lindas melodias.
Seu destino foi alterado quando minha mãe adquiriu-o numa linda loja de instrumentos musicais.
Resignado e calado ele me segue por todas as mudanças e em todas as fases da minha vida.
No meu entender, ele aceitou com fidelidade o seu papel que lhe foi destinado pela minha mãe.
Ser meu amigo e companheiro.
Num dia qualquer, aos seis anos de idade, fui dormir e na manhã seguinte acordei paralítica das duas pernas. Minha mãe não conseguia acreditar, pensara que eu estaria brincando.
Simplesmente não me mantinha em pé. Ela tentava me colocar de pé e eu desmoronava como uma boneca de pano. Começou-se então a peregrinação aos consultórios médicos e meus pais receberam os mais variados diagnósticos sem nada resolver. O desespero tomou conta deles. Até uma curandeira foi chamada. Uma senhora oriental, idosa de cabelos compridos e brancos adentrou no meu quarto, iniciou o seu ritual acendendo uma imensa quantidade de velas ao redor dos meus pés.
Em pânico, gritei!
-Mãe, ela vai queimar os meus pés!
Era o desespero, a falta de orientação tomando conta dos meus pais.
Nesta situação de aflição, vendo a minha tristeza, minha mãe pediu dinheiro para meu pai, foi à loja de instrumentos musicais que nunca havia entrado e escolheu o violão desejando me dar um pouco de alegria e distração. Fiquei muito surpresa com o presente, mesmo criança tinha consciência da nossa situação financeira e percebia que era um luxo num momento difícil. Na cama, sem ter qualquer noção de teoria musical dedilhava as cordas do violão sentindo o amor dos meus pais através dos sons de cada nota.
A doença não parou de se desenvolver. Não conseguia mais dormir sobre o colchão macio, passei a dormir sobre uma tábua com as pernas bem retas. Peregrinações desesperadas aos consultórios continuaram até que uma pequena clínica infantil se ofereceu em assumir o caso me diagnosticando como portadora de paralisia infantil.
Apesar do empenho dos médicos da clínica, o tratamento não surtiu resultado algum e então o médico responsável resolveu solicitar ajuda de dois médicos renomados do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Eles chegaram muito sérios, não fizeram nenhuma graça comigo, tiraram minha mãe do quarto, me analisaram, estudaram meu prontuário, pegaram as minhas pernas duras como uma pedra e dobraram com decisão!
A dor que senti foi de ver estrelas!
Gritei tão intensamente que a minha mãe, ao me ouvir do outro lado da porta, desesperou-se e invadiu o quarto. O que estaria acontecendo com a sua filha?! Os doutores ficaram muito bravos, disseram que esta atitude em nada me ajudaria e a expulsaram imediatamente do quarto.
Minha mãe chorava tanto ou até mais do que eu.
Os médicos passaram à tarde comigo, conversaram muito entre eles sobre o meu estado e saíram.
Apesar de não terem sido simpáticos, graças a estes dois médicos chegamos a um diagnóstico correto da minha doença: Reumatismo Infeccioso ou Febre Reumática, doença nada comum na época que, sem o devido tratamento, comprometeria o coração.
Seguiram-se dias de muita injeção, doses altíssimas e diárias de penicilina, alimentação completamente isenta de sal e muita vitamina C. Fiquei inchada como um balão, quase irreconhecível, mas fui curada. Ao receber alta do hospital que por meses permaneci, o médico me colocou no seu colo e me explicou com rigor e carinho o quão importante seria tomar as injeções mensalmente até me tornar bem adulta. Caso eu não respeitasse esta orientação meu coração não resistiria e pararia.
Um alerta assim, vindo de um médico, para mim, uma criança de seis anos, assustou-me tanto que jamais pensei em fugir das doloridas injeções. Era exatamente este o objetivo do médico, garantir que eu me responsabilizasse pelo meu corpo e me tornasse um adulto saudável. Até os meus vinte e um anos de idade, mês a mês fui aplicar a injeção com muita consciência. Graças a todos estes médicos, meus pais e meus tios, que foram muito presentes, fiquei completamente curada. Ao olhar para o meu violão, não necessitamos de palavras, as cordas que sobreviveram ao tempo ainda conseguem me fortalecer com sons graves e fortes e me acariciar com os sons agudos e suaves. Nós dois sabemos o que vivemos e sinto através dele o calor no meu coração. O calor do amor da minha mãe, meu pai e de tantas pessoas que me possibilitaram estar de pé, caminhar com as minhas próprias pernas há tantos anos e tenho certeza, ainda por muitos e muitos anos.
Não que eu não tenha tentado, mas nunca consegui fazer dele um ativo instrumento musical. Ele sempre foi e provavelmente sempre será apenas o meu guardião de lembranças. Sinto muito por ele, pois certamente ele foi confeccionado para brilhar, para nos embalar com lindas melodias.
Seu destino foi alterado quando minha mãe adquiriu-o numa linda loja de instrumentos musicais.
Resignado e calado ele me segue por todas as mudanças e em todas as fases da minha vida.
No meu entender, ele aceitou com fidelidade o seu papel que lhe foi destinado pela minha mãe.
Ser meu amigo e companheiro.
Num dia qualquer, aos seis anos de idade, fui dormir e na manhã seguinte acordei paralítica das duas pernas. Minha mãe não conseguia acreditar, pensara que eu estaria brincando.
Simplesmente não me mantinha em pé. Ela tentava me colocar de pé e eu desmoronava como uma boneca de pano. Começou-se então a peregrinação aos consultórios médicos e meus pais receberam os mais variados diagnósticos sem nada resolver. O desespero tomou conta deles. Até uma curandeira foi chamada. Uma senhora oriental, idosa de cabelos compridos e brancos adentrou no meu quarto, iniciou o seu ritual acendendo uma imensa quantidade de velas ao redor dos meus pés.
Em pânico, gritei!
-Mãe, ela vai queimar os meus pés!
Era o desespero, a falta de orientação tomando conta dos meus pais.
Nesta situação de aflição, vendo a minha tristeza, minha mãe pediu dinheiro para meu pai, foi à loja de instrumentos musicais que nunca havia entrado e escolheu o violão desejando me dar um pouco de alegria e distração. Fiquei muito surpresa com o presente, mesmo criança tinha consciência da nossa situação financeira e percebia que era um luxo num momento difícil. Na cama, sem ter qualquer noção de teoria musical dedilhava as cordas do violão sentindo o amor dos meus pais através dos sons de cada nota.
A doença não parou de se desenvolver. Não conseguia mais dormir sobre o colchão macio, passei a dormir sobre uma tábua com as pernas bem retas. Peregrinações desesperadas aos consultórios continuaram até que uma pequena clínica infantil se ofereceu em assumir o caso me diagnosticando como portadora de paralisia infantil.
Apesar do empenho dos médicos da clínica, o tratamento não surtiu resultado algum e então o médico responsável resolveu solicitar ajuda de dois médicos renomados do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Eles chegaram muito sérios, não fizeram nenhuma graça comigo, tiraram minha mãe do quarto, me analisaram, estudaram meu prontuário, pegaram as minhas pernas duras como uma pedra e dobraram com decisão!
A dor que senti foi de ver estrelas!
Gritei tão intensamente que a minha mãe, ao me ouvir do outro lado da porta, desesperou-se e invadiu o quarto. O que estaria acontecendo com a sua filha?! Os doutores ficaram muito bravos, disseram que esta atitude em nada me ajudaria e a expulsaram imediatamente do quarto.
Minha mãe chorava tanto ou até mais do que eu.
Os médicos passaram à tarde comigo, conversaram muito entre eles sobre o meu estado e saíram.
Apesar de não terem sido simpáticos, graças a estes dois médicos chegamos a um diagnóstico correto da minha doença: Reumatismo Infeccioso ou Febre Reumática, doença nada comum na época que, sem o devido tratamento, comprometeria o coração.
Seguiram-se dias de muita injeção, doses altíssimas e diárias de penicilina, alimentação completamente isenta de sal e muita vitamina C. Fiquei inchada como um balão, quase irreconhecível, mas fui curada. Ao receber alta do hospital que por meses permaneci, o médico me colocou no seu colo e me explicou com rigor e carinho o quão importante seria tomar as injeções mensalmente até me tornar bem adulta. Caso eu não respeitasse esta orientação meu coração não resistiria e pararia.
Um alerta assim, vindo de um médico, para mim, uma criança de seis anos, assustou-me tanto que jamais pensei em fugir das doloridas injeções. Era exatamente este o objetivo do médico, garantir que eu me responsabilizasse pelo meu corpo e me tornasse um adulto saudável. Até os meus vinte e um anos de idade, mês a mês fui aplicar a injeção com muita consciência. Graças a todos estes médicos, meus pais e meus tios, que foram muito presentes, fiquei completamente curada. Ao olhar para o meu violão, não necessitamos de palavras, as cordas que sobreviveram ao tempo ainda conseguem me fortalecer com sons graves e fortes e me acariciar com os sons agudos e suaves. Nós dois sabemos o que vivemos e sinto através dele o calor no meu coração. O calor do amor da minha mãe, meu pai e de tantas pessoas que me possibilitaram estar de pé, caminhar com as minhas próprias pernas há tantos anos e tenho certeza, ainda por muitos e muitos anos.
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